domingo

Visita do Além




Desta vez somos dezenove pessoas passando a Semana Santa em Parati. Um de nós, João, é professor de expressão corporal e responsável por um dos episódios mais engraçados protagonizados pela Mira, - aquela amiga sem a qual ninguém do meu grupo gosta de viajar. Pois é! Ela, com a sua mania de levar a casa na bagagem, desta vez trouxe também, por conta da sua hipoglicemia, oito latas de leite condensado. Roberta, a irmã, achou um exagero, mas não disse nada porque Mira poderia estar pensando em fazer brigadeiro, - doce pelo qual todo mundo é tarado.

Só não gostou de vê-la, assim que chegou, escondendo cuidadosamente, debaixo do colchão, as tais latas de leite condensado.

- Com esse povo todo aí, se eu não malocar, não sobra nem latinha suja prá lamber!

Roberta não ficou satisfeita com a justificativa mas, naquele momento, deu o assunto por encerrado.

Tudo aconteceu na última noite do feriado, quando só o congelador permanecia abarrotado: cervejas, vinhos e afins. A geladeira mesmo já estava cheia. De espaço. Metade de um queijo, um terço do pote de margarina, um outro pote com pó de café, restos de presunto fatiado, três maçãs, meia dúzia de laranjas, o macarrão que sobrou do almoço, oito pizzas semiprontas, ... Êpa! Oito pizzas?! Ah, era o que a turma iria comer na madrugada que aí estava, e que prometia...

Na espaçosa sala, o grupo, após a refeição, estava dividido. Roberta, que, só para lmbrar, é a irmã de Mira, e João, o tal professor de expressão corporal, conversavam sentados no chão sobre almofadas:

- Puxa! Depois dessa pizza, um sorvetinho cairia muito bem...
- Que esperança! Não há mais um único pote de sorvete no congelador. Fim de festa. Quer dizer... Se alguém quiser sair para comprar...
- Duvido! A uma hora dessas?... E a preguiça? Fica aonde?...
- É verdade! Nem mesmo um guindaste conseguiria tirar alguém daqui. Ainda bem que encontramos aquelas pizzas na geladeira, senão...
- Mas bem que eu comeria um docinho agora. Huuum! Um sorvetinho, uma trufinha, uma tortinha, um brigadeirinho,...
- ???!
- Que foi? Você tá com uma cara, Beta...
- É que eu me lembrei de uma coisa... Eu sei onde podemos encontrar umas certas latas de leite condensado...
- O QUÊ???

Roberta põe o indicador sobre os lábios:

- Shhh!!! Fala baixo, João. Não vai ser muito fácil pegá-las, não... São da Mira. É aquela mania de doce por causa da hipo. Ela escondeu oito latas debaixo do colchão. Ainda deve ter alguma coisa lá... Só não sei como é que a gente vai fazer pra ela liberar as latinhas... E se souber que eu contei prá alguém... Já viu, né?

João anima-se:

- Deixa comigo! Você distrai a Mira, e eu vou de um em um contando como vai ser.
- E como vai ser?...

João explica o seu plano, que deve ser bem engraçado porque ela já está rindo a mais não poder.

Cerca de vinte minutos após a conversa, todos são "surpreendidos", por uns tremeliques que sacodem João violentamente. Alguém diz:

- Caramba! Acho que ele tá incorporando alguma entidade...

Mira, que tem verdadeiro pavor de tudo que não conhece, atravessa a sala como um raio, e coloca-se atrás da irmã tentando se proteger. João continua lá, girando a cabeça de um lado para o outro, rosto crispado, olhos semi-cerrados... Aos poucos, os movimentos vão diminuindo e, agora, João tem a postura infantil de um indivíduo mimado, carente, mas determinado. Alguém lembra-se de perguntar:

- Quem é você?

João, o dedo na boca, cara do filho sem mãe, trejeitos de criança:
- Mo nomi é Pedrim!...

Mira, as pontas dos dedos geladas de medo, a apertar o ombro de Roberta:

- Credo! Baixou mesmo um santo no João...

Alguém segue sabatinando o ectoplasma moleque:

- Seja bem-vindo, "Pedrinho". O que você está procurando por aqui?
- Pedrim qué docim...
- Docinho??? Ih, "Pedrinho"... Você chegou numa hora meio ruim. Hoje é o último dia do feriado e já não temos quase nada aqui em casa.

O "santinho" parece irritar-se:

- Pedrim qué sabê de nada, não... Pedrim qué docim!
- Mas a gente não tem nada doce aqui prá você.
- Tem sim, tem sim. Pedrim qué... Se num dé docim prá Pedrim...

Roberta aproveita o tom de ameaça de "Pedrinho" e cutuca:

- Mira, ele quer doce.
- É... E agora?
- Agora, a gente tem que dar doce prá ele!
- Mas não tem doce! O que é que esse santo tá pretendendo fazer com a gente???
- Buaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa... Pedrim qué docim...
- Calma, Pedrinho! A gente não trouxe nada, nem uma balinha.
- BUAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA... PEDRIM QUÉ DOCIM... QUÉ DOCIM... QUÉ DOCIM... BUAAAAAAAAAA... PEDRIM QUÉ DOCIM..., - insiste, sem parar, o espírito de porco, para desespero da Mira e deleite dos amigos-da-onça.

"Pedrinho" começa então a caminhar por entre o grupo e a sacudir pelos braços um-a-um, sem abandonar o refrão...

- Xunxê tem? Pedrim qué!...

E lá vem ele, aproximando-se cada vez mais de onde estão Mira e Roberta.

- Pedrim tá esperanu docim... Pedrim qué...

Roberta continua tentando...

- Ih! Mira. Ele está quase chegando aqui. A gente vai ter que arranjar um doce qualquer pra esse santo...

E a Mira, já tremendo com a possibilidade do "espírito" tocar-lhe o corpo:

- Ai, meu Deus! O que é que a gente vai fazer???
- Ué, têm aquelas latas de leite condensado que você escondeu lá embaixo do colchão...

Mira titubeia:

- Será??? Mas aquilo é leite condensado, não é um doce!
- Bem, é o que temos... Quem sabe assim esse espírito se aquieta e vai embora?...

Nem há tempo para Mira dizer qualquer coisa, pois o "espírito" já está apontando o dedo em sua direção:

- Xunxê tem docim prá Pedrim!... XUNXÊ TEEEM!!!- vai logo afirmando.

Mira gela, enquanto Roberta cochicha-lhe:
- Tá vendo?! Ele sabe que você tem. Espírito vê tudo, Mira...
- Xunxê tem... XUNXÊ TEEEM!!! PEDRIM QUÉ DOCIM!!!

Os amigos, sacanas, assistem com a maior cara-dura, e sem nenhum remorso, Mira girar nos trêmulos calcanhares e voar para o quarto onde estava escondido o "tesouro". E enquanto ela está lá dentro o pessoal desata a rir.

- Caramba! Ela acreditou mesmo. Foi lá pegar as latas...

O som dos passos de Mira, que já vem voltando, faz com que todos retomem o ar sério, grave, compenetrado.

- Pega aí! -, ela entrega apavorada as latas a Roberta para não ter nenhum contato com o tal "Pedrinho".

Roberta passa-as ao "espírito" e, pelo menos três de nós correm à cozinha em busca de colheres.

"Pedrinho" enche a sua colher, enquanto as outras passeiam, com as latas, de mão-em-mão, de boca-em-boca.

Depois que todo mundo se lambuzou no leite condensado, o "santo", arrotando (literalmente) satisfação, avisa que vai "subir".

Entreolhamo-nos disfarçadamente, todos morrendo de vontade de rir. Alguém lembra de despedir-se:

- Vá com deus!...

E João dá seguimento a sua performance. Sacode a cabeça, grita, - agora com os olhos totalmente fechados -, parece um contorcionista tentando livrar-se de algo que o incomoda. E treme, e gira... até cair no chão. Depois, relaxa, abre lentamente os olhos, e pergunta com a maior cara-de-pau:

- Onde estou? O que está acontecendo?...

Parece uma senha, porque ninguém aguenta... A gargalhada é geral. Tem gente chorando de rir. Mira, ainda assustada e sem nada entender, faz o sinal da cruz, beija a medalhinha do cordão que traz ao pescoço, e foge da sala, temendo, talvez, uma outra visita do além, - o que leva as pessoas a rirem mais ainda.

No dia seguinte, durante o parco café da manhã, Mira (olhos fundos, resultado de um sono cheio de pesadelos) descobre que foi vítima de mais uma brincadeira da turma. Fica pê da vida. Com toda razão, o que faz com que entremos todos na fila para abraçá-la e pedir-lhe desculpas. Somos muito danados mesmo, mas adoramos Mira. E ela sabe muito bem que, nas horas realmente necessárias, sempre pode contar conosco. Além do mais, ela também tem seu lado sacana. Caso contrário, porque haveria de esconder dos amigos o leite condensado?!

Amizade que é amizade tem dessas coisas...

ju rigoni (Anos 80)


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