sábado

Haja Divã!




Mira tem um medo da violência que foge ao normal. Sêo Zé e sêo Severino, - o zelador e o porteiro -, que o digam! Além de revelar o nome de quem pretende subir ao seu apartamento, eles têm que colocar o visitante ao fone para que ela lhe ouça a voz. Ainda que seja a mãe dela! Se estiver rouca, afônica, - se Mira não lhe reconhecer o timbre, babau! Não sobe mesmo. Esse medo gerou, é claro, muitas histórias. Aí vai uma delas...

Certa ocasião, Roberta precisou ir a São Paulo para cobrir um evento. Mira não gostava nem um pouco dessas viagens. Ficar sozinha em casa, especialmente agora que havia aquele tal maníaco a solta... ("Mira o cara tá lá em São Paulo. Você vai ficar aqui em Niterói. Eu é que deveria estar com medo!")

Pela manhã, Roberta atravessou de catamarã de Niterói para o Rio com a irmã. Despediu-se de Mira em frente à Biblioteca, e correu para o Aeroporto. Pretendia estar de volta em dois dias.

Mira, insegura, não conseguia se concentrar no trabalho. Na hora do almoço, para relaxar, saiu a comprar sapatos. (Não. Não me pergunte! Eu nunca consegui entender...) Eu a encontrei quando me dispunha a atravessar a avenida Rio Branco, bem ali, na esquina da rua Sete de Setembro. Ela pediu-me que a acompanhasse. Queria experimentar alguns pares que ela havia "namorado" no dia anterior. E eu caí na armadilha.

- Em seguida almoçamos juntas, que tal?

Achei que ela estivesse precisando uma outra opinião e aceitei o convite.

Entramos numa loja. Mira apontou à gentil vendedora uns cinco ou seis pares de sapatos que estavam expostos na vitrine.

- ...calço 36, - ela dizia, enquanto eu me sentava numa das confortáveis longarinas, prestando atenção à percussão que o meu estômago iniciara.

Vieram os calçados, lindos, todos bem ao estilo da Mira. Os saltos sempre muito altos para compensar a baixa estatura.

Uma hora se passara, e ela a desfilar em frente ao espelho, aqueles e todos os outros pares que, neste tempo, solicitara à vendedora. Eu com os olhinhos pequenos, uma lerdeza, um tremor nos joelhos... Sempre fico assim quando a pressão cai.

- Escolhe logo, Mira! Já estou desmaiando de fome...
- Gostei destes dois aqui. - Segurou, virando-os para mim, dois modelos maravilhosos - e carésimos -, um na cor uísque e o outro preto.
- Escandalosamente lindos! Leva esses... Têm cores que combinam com tudo. Excelente escolha!
- É... Mas eu já tenho uns quatro pares de sapatos pretos. E tenho em uíque também...

A vendedora informa que desses modelos já não há outras cores.

- Ah! Tá vendo? É por isso que eu fico tão aperreada na hora de comprar. Passo um tempão escolhendo, e quando me decido por dois deles descubro que haveria outras opções.
- E qual é o problema, Mira? Essas cores estão perfeitas. Combinam com tudo, já disse. Hoje eu estou dura. Quem me dera ter grana para levar pelo menos um deles...
- ... mas se havia outras cores deste modelo, que venderam muito mais rápido, é porque eram mais bonitas, concorda?

A vendedora tinha aquele ar de quem só aguenta a cliente porque quando compra, compra muito. Ou compra o pouco que é caro. Mira, uma autêntica Imelda Marcos tupiniquim, (não sei quantos pares têm ao todo, mas com certeza, muito mais de cem), babava, hesitante, as belezuras.

Bem, aquele definitivamente não era o dia de nenhuma de nós três. Depois de novamente experimentar todos os pares que nos rodeavam, ela decidiu que não estava num bom dia para escolher, agradeceu à vendedora garantindo que voltaria no dia seguinte, (coitada!), e saímos da loja em direção ao restaurante. Eu queria chamar-lhe a atenção sobre essas suas atitudes, mas estava cambaleante de fome e deixei prá lá.

Almocei, finalmente, e pedi a Mira que me desculpasse. Teria que voltar ao trabalho, pois já estava bem atrasada. Quando saí, ela retornava ao bufê para "tirar uma lasquinha da lasanha aos 4 queijos." Mira põe um pouquinho de cada prato do buffet, até decidir o que vai comer. Quando afinal decide, percebe que já comeu muito mais do que deveria comer. (Novamente, não me pergunte. Eu não sei explicar...) Os garçons, - cansados de conhecê-la -, ficavam pelos cantos, apontando-a, e a morrer de rir.

À noite, ao retornar do trabalho, e como sempre, deu ordens ao sêo Zé e ao sêo Severino para que não deixassem ninguém subir sem que fosse avisada pelo interfone.

- Mas a gente sempre faz isso, dona Mira.
- Tá! É só pra lembrar.

Pegou a correspondência e entrou no elevador.
Ao abrir a porta de casa, como em todos os dias, encontrou Chiquinha a pular e abanar o que lhe sobrava do rabinho empinado.

- ô meu bijuzinho, que saudade!

A bolsa e o próprio corpo jogados ao sofá, Chiquinha aconchegava-se para os afagos de hábito.

- Olha, querida, você tem que ficar com os ouvidos bem abertos, viu? Porque a tia Beta não vai dormir aqui em casa hoje, não. Qualquer barulhinho, você avisa a mamãe, tá?

Antes de ir para a cama, pelo sim pelo não, houve por bem pendurar um panelão na maçaneta da porta de entrada do apartamento. Fez o mesmo na porta da cozinha, conjugada à área de serviço, que dá para o corredor do seu andar. E, excesso de cautela, fechou a janela da área e também pendurou nela uma de suas panelas. Novamente, não me pergunte, porque, convenhamos, para que alguém subisse pelo lado de fora seria preciso uma escada magirus. Ou um homem-aranha disposto a tecer até o décimo-primeiro andar.

Deitou-se, mas não conseguia dormir.

Dia seguinte, nem bem eu entrara no estúdio e o celular tocando.

- Ju, pelamordedeus, vai lá em casa ver como a Mira está. O telefone está sempre ocupado e ela não liga pra mim...
- Ela está bem. Eu a encontrei ontem. Ela queria comprar uns sapatos... Até almoçamos juntas...
- Mais sapatos? Depois passa o resto do mês dizendo que não tem dinheiro!...
- Mas o que está acontecendo, Beta?
- A Sonia da Biblioteca ligou. Disse que a Mira não foi trabalhar, e que ela não está conseguindo um contato. Liguei lá pra casa, mas a linha está sempre ocupada, e ela não telefona pra mim. O celular está fora de área. Estou inquieta. Quero saber o que está havendo mas não posso sair daqui agora. E mesmo que saísse... Sem reserva, não sei se seria ser fácil conseguir lugar num vôo...Ainda tenho duas entrevistas que foram previamente marcadas. E você sabe como é a Mira...
- Fica tranquila. Vou dar um jeito de ir até lá. Me dá um tempo. Depois te ligo.
- Eu aguardo. Obrigada mesmo. Inté!
- Inté!

Larguei o que estava começando a fazer, e corri para a casa da Mira.

- A senhora não vai poder subir, dona Ju...
- Como não vou poder subir? Vocês estão cansados de conhecer a minha cara. Além disso, foi a Beta quem me pediu para vir até aqui.
- Beta? Que Beta?
- A Roberta, sêo Zé. A irmã da Mira.
- Ah, a dona Roberta. A dona Roberta viajô. Ela num tá aí não...
- Ô meu Deus, eu sei, sêo Zé. O que é que eu estou lhe dizendo? Foi a RO-BER-TA que pediu que eu viesse até aqui para saber o porquê da Mira não ter ido trabalhar hoje.
- Mas onti a dona Mira disse pra gente num deixá ninguém passá sem a autorização dela...

Eu estava digitando o número do celular de Roberta quando o síndico apareceu e salvou a situação. Finalmente, subi. Abri a porta do elevador no décimo-primeiro andar e caminhei até a porta do apartamento. Toquei a campainha, soquei a porta, e só conseguia ouvir os latidos da Chiquinha. Fiquei desesperada. Muitas coisas me passavam pela cabeça e eu não queria aceitar nenhuma das opções. Por fim, girei a maçaneta e ouvi o som de alguma coisa de metal caindo e saltitando por umas três vezes ao chão. Mais preocupada ainda. "Que som seria aquele?" Vieram o síndico, o vizinho do apartamento em frente (o do "Capacho Voador", lembra?), sêo Zé, Marquinhos e os amiguinhos, as diaristas dos andares imediatamente acima e abaixo de onde estávamos, - muita gente. O corredor estava repleto. E da Mira, nem um sinalzinho de vida.

Como já de tudo tentáramos sem qualquer resultado, fomos obrigados a novamente apelar para aqueles que os demais moradores do prédio já chamavam de "a segurança pessoal da Mira". Enquanto aguardávamos que o Corpo de Bombeiros atendesse ao chamado, o celular tocou novamente. Era Roberta. Tratei de enrolar a minha amiga ao telefone. Disse-lhe que acabara de chegar ao prédio. Que logo, logo estaria ligando para dizer o que acontecera.

No corredor não havia mais espaço nem para um microscópico ácaro. As crianças, para quem tudo é festa, batiam na porta e tocavam seguidamente a campainha. Eu, à essa altura dos acontecimentos, só conseguia rezar.

Quando dois bombeiros (um deles já vinha rindo, pois já estava se tornando um "velho" conhecido) saíram do elevador, e eu me preparava para descrever a situação para eles, a porta se abriu e surgiu a figura da Mira em camisola, descalça, olhar entre o sonolento e o assustado, um facão do tipo "pexêra" na canhota, e Chiquinha aos calcanhares, latindo com a arrogância de quem pede satisfação.

- O que é isso, Mira? -, foi tudo que consegui dizer em meio ao silêncio provocado pela sua estapafúrdia aparição.


- Alô?...
- Roberta? Tudo resolvido.
- O que é que houve, Ju?
- Ela está tomando um banho pra tentar despertar. Disse que, como não conseguia dormir, tomou dois comprimidos para relaxar e apagou.
- Ai, meu Deus... Isso tudo é por causa da história do maníaco que ela vem acompanhando nos jornais. A Mira e os seus medos...
- Não brinca! Então foi por isso...
- ... o quê?
- Ela pendurou panelas nas maçanetas das portas de entrada e na janela da área de serviço...
- Não tem que voltar pra análise? Agora vê se eu posso ficar aqui tranquila?...
- Vamos fazer o seguinte: quando é que você volta?
- Amanhã.
- Então, eu fico aqui com ela até amanhã, ok?
- Puxa, valeu mesmo!
- Só uma coisa, ju: por que o telefone aí de casa só dava ocupado?
- Ela solicitou à telemar o serviço-depertador para tentar acordar a tempo de ir para o trabalho. Provavelmente, o telefone tocou, ela atendeu, mas voltou a dormir antes de devolver o fone ao devido lugar.
- Ai, meu Deus, quem merece?...
- Inté, querida!
- Inté!

ju rigoni (sem registro de data)


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