sábado

As Cartas Não Mentem...

Mira resolveu acompanhar uma de nossas amigas a uma cartomante cuja fama vinha sendo estampada em jornais e revistas de todo o país. Diziam que a ela recorriam artistas e políticos para resolver questões que... nem Deus!. Mira tem verdadeiro pavor de tudo o que não conhece (lembra de "Visita do Além?"), mas acabou cedendo aos apelos da amiga, aventurando-se.

Saltaram de um taxi em frente a casa, muito grande, cuja fachada era feita em pedras quase totalmente tomadas pela hera. Anunciaram-se pelo interfone, ao lado do portão, onde, quase em seguida, surgiu um senhor com ares mordômicos, que seguiram até a sala-de-espera do consultório, nos fundos da casa. Mira, como era de se esperar, meio amedrontada, desconfiada, olhando tudo ao redor...

O ambiente era estressante, - à exceção das paredes, que eram brancas, tudo estava em diferentes tons de vermelho, - que Mira detesta. Por isso, reagia à agressividade da cor ambiente fixando o olhar, o mais que podia, na paisagem oferecida por uma janela, que dava para um jardim onde havia azaléias, extremosas, chapéus-de-napoleão, margaridas e gerânios dispostos em canteiros bem cuidados, a contrastar com o verde de um recém aparado gramado onde, vez ou outra, passarinhos pousavam tranquilos.

A amiga, Dinazarda, perdida nos problemas amorosos que a conduziram até ali, afundava no vermelho-sangue de uma das confortáveis poltronas, ansiosa pelas previsões de (vamos chamá-la assim) Madame X. Dinazarda era dessas moças à antiga. Romântica, crente no amor eterno, cheia de fantasias sobre o cotidiano da vida a dois, não conseguia entender porque Rodrigo havia batido em retirada depois de sete anos de noivado. Mira, com seu jeito prático de ver as coisas, já havia, por várias vezes, tentado fazê-la entender que o mundo nunca teve aqueles tons de rosa com os quais ela pintava os relacionamentos a dois.

Desviou por um momento a atenção da janela para observar, com mais cuidado, a imagem de uma mulher, sobre um amplo aparador, luxuosamente vestida como uma cigana. Aos pés dela, um prato dourado, repleto de moedas de diferentes nacionalidades, ao lado do estranho porta-incenso, em forma de dragão, a soltar por narinas e boca a fumacinha que impregnava o ambiente com o aroma extremamente adocicado que lhe enjoava o estômago.

O som dos bambuzinhos que compunham a cortina de Bali de uma das portas fez com que Dinazarda e Mira olhassem para o homem que, provavelmente, estava saindo de uma consulta. Este passou rápidamente por elas em direção a saída, mas ambas tiveram tempo de reconhecer nele um senador da república. Mira compreendeu então a razão de tantos carros pretos, de chapa oficial, e dois batedores ao lado de suas motocicletas, parados a uma certa distância do grande portão da casa da cartomante. "Se era para disfarçar... - pensava ela -, ...gato escondido com o rabo de fora!"

Logo em seguida veio um rapaz, trajando, com apuro, um figurino que parecia ser inspirado na Índia. Calça, túnica e turbante muito brancos e pés descalços. Cumprimentou-as apertando as palmas das mãos uma contra a outra e inclinando cabeça e tronco.

- Madame vai atendê-las em alguns minutos.

O rapaz retirou-se e Dinazarda, bocejando, já reclamava da demora. Mira disse-lhe que ainda era tempo de ir embora, mas a amiga insistia em ouvir o que as tais cartas tinham a lhe dizer. Talvez porque não houvesse mesmo nada para fazer enquanto aguardavam, Mira começou a narrar, para a amiga, em rápidas palavras, o final de uma história, escrita por Machado de Assis, que tinha como título "A Cartomante".

- Ê-ê Mirinha... Que história trágica! Você gostaria que eu desistisse mesmo, não é?...
- É que eu acho que você não vai encontrar o que procura nem aqui, nem em nenhum outro lugar. E pra dizer a verdade esse vermelho todo já tá me deixando irritada. Sem falar nesse cheiro enjoativo de incenso!

Cerca de dez minutos depois, o falso indiano veio buscar Dinazarda. Foram perdidos mais alguns minutos numa pequena discussão, porque Dinazarda queria que Mira entrasse junto com ela. Mira não estava fazendo a menor questão de acompanhar a consulta da amiga, mas esta não queria abrir mão de sua companhia. Quando Dinazarda parecia desistir da consulta e, pão-duro como ela só, preparava-se para pedir de volta o seu dinheiro, surgiu na porta uma mulher morena, de longos cabelos, muito maquiada, vestida como a cigana da imagem que tanto impressionara Mira.

- Pode deixar, Sebastião... Venham, por favor!

Mira estava toda arrepiada. Aquela mulher paramentada de vermelho e coberta de ouro dos pés à cabeça causava-lhe uma desconfortável impressão. E seu perfume mais doce que o do incenso, aumentavam-lhe as náuseas. Os cabelos negros eram atados por uma bandana também vermelha. O rosto exótico, misterioso, bonito, parecia emprestar certa credibilidade aos seus propalados poderes.

As moças seguiram-na por um longo corredor, cheio de portas fechadas, até entrarem numa sala ampla e escura, onde apenas uma lâmpada pendendo de uma luminária presa ao teto, lançava um círculo de luz sobre a mesa onde estavam o baralho, um copo com água, uma imagem menor, mas muito semelhante a da outra sala, e uma sineta de prata. Havia lá apenas duas cadeiras, uma de cada lado da mesa.

- A senhora vai ter que ficar de pé.
- Tudo bem!, disse Mira, sem entender porque ela não poderia pedir ao rapazote fantasiado para lhe arranjar uma cadeira extra.

Dinazarda e a adivinha acomodaram-se e, em seguida, a mulher sacudiu a tal sineta. O dândi novamente apareceu e Mira achou, que, na escuridão daquela sala, o branco impecável da roupa do rapaz fazia sentido.

- Troque a água do copo, por favor, Sebastião. E acenda um novo incenso que este aqui já está no fim.

- Pois não, madame!

Agora, a mulher parecia rezar. Tinha o cotovelo direito apoiado na mesa e segurava a testa com o polegar e o indicador, em atitude muito concentrada. Mal o rapaz depositou o copo com água sobre a mesa e o novo palito de incenso começou a verter a fumacinha de cheiro enjoativo, Madame X tocou o baralho três vezes, dizendo palavras numa língua que Mira, apesar de conhecer um sem-número de países ao redor do mundo, jamais ouvira.

A "cigana" embaralhava e embaralhava as cartas. Em seguida, pediu que Dinazarda as dividisse em três montinhos. E voltou a embaralhá-las. Essa operação foi repetida uma, duas, três vezes. O ritual cansativo acabou por relaxar Mira a tal ponto que o medo do desconhecido estava virando impaciência. Sendo a Mira quem é, isto sempre quer dizer perigo. Entretanto, junto com a impaciência, crescia dentro dela uma aguda curiosidade. E procurava olhar a cena como se estivesse a assistir um filme classe c.

- Você veio aqui porque tem uma questão amorosa a ser resolvida, - começou a cigana.
- Isto mesmo!, - a Dinazarda, como se a mulher, com essas palavras, houvesse salvado a sua vida.
E Mira sem se conter:
- Tá escrito na sua testa, Dina. Não nas cartas ou nas estrelas. E a maioria das mulheres vem aqui por esse motivo, né não?
- Shhhh! - A mulher olha para Mira. - Por favor, você pode ficar aqui, mas não pode me atrapalhar. Falando, você só vai me fazer perder a concentração.
E Mira, irônica:
- Ah, tá! Sei...
Madame X vira a primeira das três cartas que Dina escolheu:
- Veja! Aqui está ele, o rei louro, o rei de copas...
A Mira:
- Louro??? Aí, Dina... fala pra ela que, de branco-ariano, o Rodrigo só tem os dentes. É um deus negro!
- A senhora quer, por favor, se aquietar. É impossível manter a concentração com alguém falando o tempo todo... - Madame X estava mexida.
- Fica quieta, Mirinha! Deixa a Madame X falar.

Mira ficou lá, ouvindo a "interpretação" que a mulher estava dando às cartas que Dina ia virando, a pedido da cartomante. "Que provavelmente aquele rei louro que aparecia no jogo era alguém que estava influenciando "o amor" da Dina. Que essa e outras desditas que vinham ocorrendo em sua vida provavelmente deviam-se ao fato de que Dina não cuidava da sua espiritualidade. Que, se Dina aceitasse, bastava deixar o dízimo do que possuia e ela cuidaria para que sua vida voltasse a entrar nos eixos. Que esse dinheiro serviria para que ela adquirisse todas as oferendas, - obrigações que Dina estaria a dever aos espíritos protetores. Que por mais algum dinheiro ela lhe daria um defumador que deveria ser "passado" em todos os cantos de sua casa assim que a ela retornasse. Que a situação era difícil porque, no momento, "o amor" de Dina estava, segundo uma dama de paus que aparecia ao lado do tal rei de copas, muito envolvido com uma mulher morena que trabalhava com ele.

- Incesto! A única mulher que trabalha com o Rodrigo é a mãe dele. A família é dona de uma farmácia. Trabalham lá a mãe, os dois irmãos e um primo dele. E se...
- Minha querida, por gentileza, você pode ficar quietinha? Não seria melhor você esperar pela sua amiga lá na outra sala?
- Por mim, tudo bem! Eu até prefiro...
Dinazarda:
- Ah, não, Madame X... Deixa ela aí. Eu prefiro assim. - E olhando para Mira - Fica quietinha, fica amiga?

Mira fechou a boca o mais que pode. Porém, vez em quando, não resistia e soltava um "Ai, meu jesus cristinho! Ouviu todo o blá-blá-blá que a falsa cigana endereçava aos ouvidos da pobre Dinazarda, fazendo a maior força para não interferir, e às vezes com muita raiva da amiga cuja ingenuidade era de causar vômito. Até que...

- Madame, a senhora vê mesmo a possibilidade dele voltar para mim? Na verdade, vim até aqui em busca, única e exclusivamente, desta resposta.
A cartomante pede que Dina vire mais uma carta do bolo. Trata-se de um valete de copas.
- Olha, minha filha, há uma grande possibilidade porque a criança de copas indica um novo começo.
- Jura? A senhora está vendo isso aí?...
- Só digo o que vejo!
E a Mira:
- A senhora me perdoe a interrupção mas, qual foi a última vez em que esteve num oftalmologista?
- Que é isso, Mira? Fica quieta!
- Olha, eu já pedi a...
- A senhora chamou esse valete aí de criança?
- Isso mesmo. E daí?...
- Bem, eu não sou cartomante não, mas posso lhe assegurar que, desta vez, a senhora tá vendo tudo errado mesmo.
Enfezada, a cigana ergueu-se da cadeira e ficou cara a cara com Mira.
- Mas que petulância!
- Mirinha, quê isso?...
- Quer saber de uma coisa, Dina?... Levanta daí e vamos embora. Eu nunca ouvi tanta bobagem.
- Mas Mirinha, eu ainda preciso saber...
- Eu conto. Eu digo tudo que você quer saber sem precisar de carta nenhuma. Mas vamos embora daqui.
- Que absurdo! Você está me chamando de mentirosa? Você não sabe com quem está falando... Me respeite!
- Eu diria que a senhora sim, como adivinha, deveria saber com quem fala...
- Você é doida é, minha filha?...
- E das mais perigosas. Sou daquelas que, quando acham que estão sendo enganadas, chamam a polícia.
A mulher calou-se, pensativa, e, em seguida, deu um passo para o lado, abrindo a passagem para Mira e uma Dinazarda completamente tonta.

O tal Sebastião, que ouvira as vozes alteradas de Mira e da patroa vai entrando, esbaforido, no mesmo momento em que Mira passa arrastando a amiga e, compreendendo o gesto brusco que Madame X traça com as mãos no ar, acompanha-as até a saída.

Lá fora, Dinazarda, reclama sem parar:
- Que droga, Mira! O que é que te deu?...
- Eu jurei pra Beta que não ia contar. Mas você já está bem grandinha...
- Contar o quê, Mirinha?... É alguma coisa sobre o Rodrigo? O que é que você e a Beta sabem que eu não sei?
- É isso mesmo. Olha, Dina, esquece o Rodrigo. Ele tá em outra! Arranjou uma outra mulher -, que não tem nada a ver com o trabalho dele e é bem loura, sabe?
- Mira, deve ser só um caso sem importância. A cartomante viu um novo começo pra gente nas cartas. Lembra quando ela falou do tal valete que ela chamou de... criança de copas?
- Dina, eu não sou cartomante, mas vi aquilo de uma outra forma. Cheguei a me arrepiar porque achei mesmo que as cartas poderiam estar te enviando uma mensagem...
- Como assim?
- Porque essa tal nova paixão do Rodrigo tá grávida!
- O QUÊ?
- É isso aí. E não chora não que aquele cabra não vale um traque.
- Tô chorando por isso não...
- Por que, então?...
- Porque você devia ter me avisado antes. Eu gastei a maior grana pra conseguir uma hora com aquela vigarista famosa!
- E a Beta achando que você ia morrer... Você tem um pino frouxo mesmo, eu nem me surpreendo, mas... viu o senador?
- Vi. O que será que ele queria das cartas? Seria uma questão pessoal ou nacional?
- Ai, minha nossa senhora dos impostos! Acho que estou precisando ir a Brasília pedir meu dinheiro de volta. A Beta não vai acreditar...

ju rigoni


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