domingo

Cachorro Quente

E não é que a Mira conseguiu levar a Chiquinha para passar o fim-de-semana em Friburgo?!... Reclamações não faltaram. Na verdade foi o maior bate-boca na hora de sair para a estrada. Mas quando a Mira cisma, não tem jeito não. E bastou que ela ameaçasse desistir de viajar com a turma para que a discussão fosse encerrada. Tem graça viajar sem a Mira, ora bolas?...

Chiquinha, contra todas as previsões, subiu a serra como uma lady. Alheia a toda confusão armada em torno dela, permaneceu aconchegada ao colo de sua dona, como que guardando as energias para mais tarde.

Desta vez, além do travesseiro e das latas de leite condensado, precisávamos ficar atentos também à cadelinha poodle que tinha o latido mais agudo e irritante que eu já ouvi. O que seria deste fim-de-semana? Só Deus sabia.

E nós tivemos uma prévia assim que o empregado do sítio abriu os portões para dar passagem aos carros. Dois cães enormes (já ouviu falar em dogue alemão?) seguiram-nos, latindo e saltando, até o lugar onde, finalmente, estacionamos.

Só de olhar para Mira dava prá perceber que ela já não estava achando uma idéia tão boa assim ter trazido a Chiquinha. Esta, atrevida, esticava-se latindo sobre o ombro de dona, enfrentando feito gente grande os monstrengos.

Kênia, - nossa amiga desde longa data -, recebeu-nos com alegria e descontração, acalmando Mira e mandando que o empregado prendesse os grandalhões. Ainda bem! Pelo menos conseguimos sair de dentro dos carros.

Depois de acomodar a bagagem, fomos caminhar pelo sítio, - Mira com Chiquinha presa à coleira. Foi uma tarde agradável em que divertimo-nos, desfrutando de uma paisagem belíssima em que não faltaram um rio, uma cachoeira e um pomar (dos deuses!) onde matei a saudade de uma fruta que fez parte da minha infância. Sapotis carnudos, deliciosos, com aquele aroma tão peculiar. Delícias que só de lembrar enchem de água a boca. Havia de tudo por lá: tangerineiras, aceroleiras, abacateiros, macieiras, mangueiras... Deus, que coisa maravilhosa!

Chiquinha ia fuçando tudo, fazendo xixi aqui e acolá. O que lhe sobrava do rabo, bem empinadinho, e o jeitinho faceiro de quem é dona da situação. Vez por outra, diante de alguém, ou de um animal diferente, (o que não faltava no sítio), disparava aquele latido enlouquecedor.

À tarde, um passeio pela cidade da lingerie, onde comprou-se calcinhas, sutiãs, cuecas, camisolas, pijamas, pantufas e até um roupãozinho pra Chiquinha. Uma dama! Nem parecia aquela cachorrinha histérica que obrigou Mira, por força de um abaixo-assinado entre os condôminos, a procurar um novo apartamento. Lá ia feliz no colo da "mãe", língua de fora, cheirosa e branquinha, apontada por todas as crianças que passavam por nós. Como diria a namorada do meu aborrecente sobrinho:

- Que meiguinha!

À noite, uma partida de bolão no Country, e depois, jantar e muita conversa jogada fora, regada a cerveja. Chiquinha? Anjinho de quatro patas. Na cadeira onde Mira a colocou ela ficou. De vez em quando, uma queijinho, um pedacinho de carne, um agrado. Quando resolvemos ir para casa dormir, já passava das três.

- Socoooooooorro! Socooooooooorro! Alguém me ajude, pelamordedeus...

Foi assim que começou o nosso domingo.
Morena, baixinha, jeito decidido e doce, e um restinho do sotaque nordestino, Mira surgiu no alto da escada que levava ao corredor onde ficavam nossos quartos. Estava descabelada, descalça e, como sempre faz quando fica nervosa, sacudia os braços e meneava descoordenadamente a cabeça.

Seus gritos devem ter acordado até mesmo o povo dos sítios vizinhos, embora estivessem muito distantes. Kênia, nossa anfitriã surgiu, assustada, também com os cabelos em desalinho, a cara amassada, um olho mais inchado que o outro, ainda tonta de sono.

- Meu Deus, o que está acontecendo?

E a Mira só conseguia gritar por socorro.
Agora, já todos estavam de pé. Zumbis perambulando pela casa, a olhar uns para os outros naquilo que deveria ser uma tranquila manhã de domingo em Friburgo. Apesar do sono, o olhar de Roberta, (a irmã de Mira, lembra-se?) encontrou o de João. Com toda certeza estariam pensando: "Pronto! Vai começar..."

Embora dia de descanso, todos os empregados do sítio foram convocados para a busca a Chiquinha. Mira, inconsolável, metia-se em todos os lugares chamando pela cadelinha: "Chiquinha! Chiquinha! Vem com a mamãe, Chiquinha..." E pensando alto: Por que é que eu fui trazer o meu bijú?

Nove, dez, onze horas e... nada! Nenhuma notícia.
Todos ainda procuravam Chiquinha quando Roberta viu Mira seguir em direção à casa. Seguiu-a até o quarto. Entrou e viu a irmã trocando de roupa, preparando-se para sair.

- Vai aonde, Mira?
- Vou à polícia! Vou dar queixa do desaparecimento da Chiquinha. Alguém roubou a minha lindinha, Beta.
- Tá doida, Mira? Você acha que eles não têm nada prá fazer? Eu bem que avisei prá não trazer essa cachorra junto.
- Não chama a Chiquinha de cachorra!
- Ah, dai-me paciência... E a Chiquinha é o quê, Mira?...
- Mas eu não gosto que fale assim do meu bijú.
E Mira desatou a chorar. Roberta, com pena, afagou-lhe os cabelos.
- Sossega, Mira. A Chiquinha vai aparecer, você vai ver...

Meio-dia, uma, duas, três horas da tarde. E nada!
A turma já conhecendo o sítio em todos os seus detalhes mais íntimos, e a Chiquinha? Cadê? Mira era o retrato do desalento.

- Se ela não aparecer até a hora de ir embora, vocês vão e eu fico. Eu não saio daqui sem o meu bijuzinho.

Kênia, exausta, já não sabia o que fazer para amenizar o sofrimento da amiga.

Quando as malas já estavam sendo colocadas nos carros, um menino, filho da cozinheira, vem correndo em direção a Mira.

- Dona! Dona!

Todo mundo atento ao moleque.

- Vem, vem... - chamava e corria em direção ao canil, o único lugar ao qual ninguém deu atenção, por conta do tamanho e da inquietude dos dois "bezerros" que lá continuavam presos.

De longe já dava prá ver a cena.
Chiquinha deitada, e um dos monstrengos, meio metro de língua, a lamber-lhe prazerosamente, por entre a tela que recobria o canil.

Mira só conseguiu dizer "Ainda bem que esse "sujeito" está preso", e correu a resgatar a Chiquinha.

Mas não foi fácil tirá-la de lá não. O protesto grave e intermitente do bonitão e os agudos apelos da Chiquinha, rosnando e latindo para Mira como nunca fora capaz, formavam um dueto de arrebentar tímpanos.

Durante a viagem de volta, Chiquinha jururu, olhinho caído, cara de banzo. E Mira fazendo promessas.

- Eu sei que você prefere os altos, musculosos e temperamentais. Mas a mamãe vai conseguir prá você um namorado porreta, um amor bem arretado. A língua daquele "cabra" era quase do seu tamanho, bijuzinho...

ju rigoni (sem registro de data)

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Um comentário:

angela disse...

Maravilhosa estória. Amei a chiquinha...rs.
beijos