quinta-feira
Pega Ladrão!
Mira vinha caminhando pela calçada da avenida Amaral Peixoto quando, de repente, puxaram-lhe a bolsa de modo tão violento que ela foi jogada ao chão. Aturdida, ouvia os gritos:
- Pega! Pega!
Levantou um braço para proteger os olhos do sol, e ainda conseguiu ver o pivete com sua bolsa na mão atravessando uma das ruas de pior trânsito de Niterói, em performance merecedora de medalha olímpica. O "bichinho" parecia personagem de desenho animado, o corpo magro, ágil, bamboleante feito mola, por entre os carros que passavam rápido tentando vencer o sinal prestes a fechar.
Alguém estendeu a mão para ajudar Mira a levantar-se. Cambaleante, ia estapeando a roupa na tentativa de limpar a poeira do chão e tentando se recompor do susto, quando percebeu o bololô na calçada oposta da avenida. Alguém já havia pego o meliante.
Medrosa, Mira não sabia se aquilo era bom ou ruim. De qualquer modo, tratou de ligar para a irmã.
- Beta? Um pivete me levou a bolsa.
- Ai, meu jesus cristinho! Como foi isto? Onde você está agora? Tem que dar queixa, Mira. Eu conheço um investigador...
- Vou não! Um policial civil que estava passando conseguiu pegar ele e a bolsa já está aqui na minha mão. Depois esse sujeito me encontra por aí e quer a forra...
- Vai sim! Não é assim que se deve agir numa situação como esta, Mira. Me diz onde você está que eu vou até aí te pegar. Vamos juntas.
Já no distrito policial para onde haviam levado o tal garoto, aguardavam ambas na ante-sala do delegado. Um investigador, conhecido de Roberta, tratou logo de providenciar-lhe uma audiência com "o homem" para agilizar as providências. Ainda assim, Roberta ligou para uma amiga da turma que era advogada pedindo que viesse acompanhar a ocorrência. Mas esta, enrolada como era, ainda não aparecera.
Mira parecia extremamente agitada, desconfortával. Vez por outra levantava-se do banco onde estavam sentadas e caminhava de um lado para o outro, como que enjaulada, sacudindo os braços de modo descoordenado do jeitinho que sempre faz quando está nervosa.
- Senta aí e se acalma, mulher.
- Não tô gostando desse negócio de fazer reconhecimento de pivete não, Beta.
- É preciso, Mira.
A porta do gabinete entreaberta, ouvia-se diferentes vozes em acalorada discussão.
- ... o senhor vai ter que provar. Isto não é assim não...
- Safado, é isso que você é! Não vou deixar isso barato não...
- Minha filha, doutor, minha filha...
- Sua filha está doida varrida. Eu nunca a vi. Nem sei como ela é...
- Eu vou te encher de porrada, sêo advogadinho de merda. Minha filha não mente.
A confusão lá dentro parecia aumentar. Dava para perceber que alguém tentara atingir alguém com um soco.
Mira ouvia isso tudo agitadíssima.
Uma voz, que parecia ser a do delegado, chamava:
- Baraúna! Baraúna!
Passa pelas duas irmãs, em direção à sala do delegado, um homem moreno, alto, forte, - um verdadeiro armário embutido.
- Pois não, doutô!
- É melhor você ficar por aqui. Os ânimos estão muito mexidos.
A entrada do gigante na sala pareceu surtir algum efeito sobre os contendores.
O delegado parecia dirigir-se ao acusado.
- O senhor está sendo apontado como autor de um estupro. A moça, apesar de muito machucada, não apenas nos deu o seu nome como já o reconheceu.
- Um equívoco, doutor. O senhor sabe que pessoas sob forte impacto emocional podem cometer enganos.
- Eu vou te matar, seu sacana, sem-vergonha!
- Calma, senhor. Eu sei que está nervoso, e partilho da sua indignação. Eu também tenho filhas. Mas vamos resolver tudo dentro da lei.
- Este sujeito é um cínico, doutor, não está vendo?...
- O senhor me respeite. Eu sou um advogado. E a sua filha é louca!
- E o senhor cale a boca ou mando lhe meter no xadrex imediatamente.
- Doutor, o senhor sabe que não pode falar comigo desta maneira. Eu sou um advogado, um colega seu.
- Eu não tenho colega estuprador. Abra a boca somente quando algo lhe for perguntado.
- O senhor não pode afirmá-lo assim. Não está pensando que porque é delegado pode me tratar como trata esses seus bandidos de terceira categoria.
- Tem razão. O senhor é um bandido de primeira categoria.
- Enquadra esse filho da mãe, doutor.
- Isto não vai ser fácil não. Eu conheço os meus direitos. Onde está o telefone?
- O senhor pode procurar um lá onde eu vou mandar acomodá-lo.
- Isso mesmo, doutor. Esse cara já passou dos limites faz tempo.
- Eu não vou ser preso sem que, antes, entre em contato com um colega advogado.
- Baraúna!
- Pois não, doutor.
- Recolha o eminente advogado ao xilindró.
- O senhor não sabe com quem está falando. Isto não vai ficar assim não, hein?...
Baraúna sai da sala arrastando o talzinho, que não pára de protestar.
- Eu não vou ficar neste pardieiro. Eu tenho diploma de curso superior. Eu exijo uma cela especial...
Mira e Roberta olham de modo discreto, enojadas, o sujeito que passa puxado pelo colarinho. Alto, bonito, perfumoso, - um homem como tantos que passam ao lado pelas ruas e a quem até lançariam olhares de admiração. Quase em seguida vêm à porta do gabinete para as despedidas um homem alto, grisalho, de cerca de 50 anos, pela voz com certeza o delegado, acompanhando um casal, provavelmente o pai e a mãe da vítima que, penalizadas, as irmãs, coração doendo, observam.
Mira nunca esteve tão nervosa. Roubo, estupro, pancadaria, choradeira, - muita violência para um dia só. Cheio de mesuras, o xerife vem buscá-las na ante-sala.
- A senhora é a dona Roberta? Que prazer recebê-la.
- Olha, meu senhor, posso lhe assegurar que, de minha parte, não estou nada feliz por estar aqui.
- Ah, eu compreendo. Me expressei mal. Quis dizer que vai ser muito bom poder ajudá-la em qualquer coisa. E quem é essa moça bonita que a acompanha? É ela a vítima do moleque?
- Minha irmã, Mira. É ela sim.
O delegado, cheio de salamaleques, toma a mão de Mira e a beija.
- ... um seu criado.
Mira não está nem aí para os olhares compridos do policial famoso. Dava tudo para girar nos calcanhares e ir para casa agora mesmo. O delegado aponta a porta do gabinete.
- Entrem e acomodem-se, por favor.
Mira, já sentada, sente um calafrio ao lembrar que os "ouvidos" das paredes da sala onde está já escutaram muito lamento, muito choro, muita súplica, muito medo... Seu primeiro ímpeto é levantar-se e cair fora. Mas Roberta não permitiria. Era preciso enfrentar a situação.
- Ledo, o investigador, já me contou o que aconteceu, dona Roberta. O garoto já está recolhido ao xadrex. Só falta o reconhecimento.
Mira tremelica na cadeira. Ia dizer qualquer coisa quando o tal Baraúna adentra novamente a sala.
- Doutô, o carcereiro tá aí fora. Veio dizer que aquele advogado tá fazendo o maior barulho lá na cela.
- Manda ele entrar.
Baraúna chama o carcereiro.
- Boa tarde, doutô!
- Oi, Nelson. O que é que tá havendo?
- O homem mal chegou tá provocando o maior tumulto lá embaixo. Não quer ficar na cela com os outros de jeito nenhum. Disse que é advogado, tem diploma e direito a cela especial. Só que a carceragem tá lotada. Eu num tenho onde botá o homem.
- Você não disse que o sujeito é um estuprador, disse?
- Não, doutô. Senão os presos esfolam ele vivo.
- Mas ele não sabe que você não disse?
- Não senhor, doutô. Deve ser por isso que ele tá morto de medo.
- Ótimo! Vamos deixar esse salafrário sentir um gostinho do próprio veneno. É advogado e sabe muito bem o que acontece com um estuprador que é colocado junto com outros presos.
Mira se inquieta na cadeira.
- Entendido, doutô. Mas por causa desse medo ele quer a tal cela especial. Começou a falar alto, exigir, esbravejar, já arranja antipatias. E os presos, - o senhor sabe como é -, tão fazendo o maior barulho.
O delegado parecia pensar. Mira e Roberta nem se mexiam, pasmas com a conversa que fluía como se não estivessem ali. De repente, "o homem" soltou do grande risque-rabisque sobre a mesa uma folha em branco, tomou do porta-lápis uma caneta, escreveu alguma coisa e estendeu o papel ao carcereiro.
- Toma, Nelson. Dá um jeito de prender isso na frente da cela onde ele está.
Mira e Roberta quase não acreditavam no que estavam lendo no tal cartaz improvisado pelo delegado.
- Diga a ele que é um presente pessoal do delegado. Cola isso lá na grade da cela e manda ele calar a boca, ou eu vou ser obrigado a ir até lá. E ele não vai gostar.
- Tá certo, doutô. Dá licença? -, e o homem foi saindo da sala com o tal cartazete onde se lia "CELA ESPECIAL" em letras de fôrma bem grandes, enquanto Roberta olhava, propositadamente, o relógio de pulso a afrontar o delegado exibido e metido a sedutor.
- Bem, as senhoras me desculpem, mas não vou atrasá-las mais. Vamos ao reconhecimento do moleque?
Mira apontou por duas vezes o garoto errado. Tremia feito vara verde. Roberta, que esbarrou no menino, que chegou a delegacia no mesmo momento que elas, sabia que a irmã estava fazendo isso de propósito e dava-lhe safanões raivosos.
- Mira deixa de ser besta. Você sabe muito bem qual deles é o tal pivete. Eu já tô perdendo minha paciência...
O delegado também parecia inquieto e Mira, finalmente, apontou, com muito medo, mas também com muita pena, o bandidinho adolescente que, muito provavelmente, iria para uma instituição para menores e, mais cedo ou mais tarde, estaria de volta às ruas, pior do que quando lá entrou. "Merda de vida", ela pensava.
As duas ainda ficaram um tempo na delegacia, a espera da amiga advogada que iria acompanhar os acontecimentos. Mas sem a corte do delegado que já estava no gabinete a tentar resolver uma briga entre vizinhos.
Quando, finalmente, chegaram em casa Roberta cutucou Mira.
- Viu? Não dói tanto assim exercer a sua cidadania.
- Isto é muito bonito de dizer. Mas me lembra de não colocar mais os pés numa delegacia, viu?
Tomou dois calmantes e deitou-se para dormir.
No dia seguinte, Roberta, que escrevia para o segundo caderno de um jornal de grande circulação, pedia espaço ao editor do caderno principal para contar na seção policial a história da "cela especial" ouvida na desventurosa tarde anterior.
Uma semana depois, na tentativa de abafar o caso, o delegado foi transferido para outro município.
ju rigoni
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3 comentários:
Olá querida Ju, belo texto... Simplesmente Adorei!... Beijinhos de carinho e ternura,
Fernandinha
Novamente obrigado amiga. Abraços
Querida Ju, voltei para desejar-te um magnífico ANO DE 2009... Um abraço de muito carinho,
Fernandinha
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