terça-feira

Trem Doido...



Mira conhece quase o mundo todo. Quando conseguia tirar férias de 30 dias ela sempre viajava. Na volta tinha sempre muita coisa pra contar, e quem ia com ela tinha mais ainda.

Numa de suas primeiras viagens, nos anos 70, dentro de um trem que ligava duas cidades italianas, Mira ia olhando a paisagem e admirando a beleza bucólica que desfilava à janela. Roberta esperava-a na estação. Estava tudo certo para embarcarem ainda naquele dia. Iam para a França, oportunidade surgida durante a viagem, porque encontraram em Roma um amigo que tinha parentes em Saint Hilaire, Paris. A chance de conhecer a cidade-luz sem gastos com hospedagem era imperdível.

Em frente ao lugar em que estava sentada havia um padre que, desde que embarcara, lá se acomodou não desgrudando um único segundo da leitura do livro sagrado. Tudo era muito diferente do Brasil. Embora os italianos sejam entre os europeus um dos povos mais expansivos, ainda assim era impossível compará-los com a xeretice e o calor humano brasileiros quando se tratava de estar juntos num transporte coletivo qualquer. Como o padre a ignorasse, ela seguiu deliciando-se com a paisagem.

Algum tempo depois o trem parou. O padre em frente à Mira esboçou um muxoxo, girando rapidamente a cabeça em direção à janela e, em seguida, voltando à Bíblia. Mira agitou-se na cadeira, esticando o corpo para tentar ver um pouco mais do que a janela do trem exibia. Supunha que tivessem parado em alguma estação de algum lugarejo distante e que estivessem embarcando e desembarcando alguns passageiros ou, quem sabe, alguma carga especial.

Já eram passados cerca de 20 minutos e o trem continuava imóvel. Como o padre continuasse lendo tranquilamente, Mira manteve-se firme em seu lugar. Ela não fora à Itália para pagar o mico de ficar incomodando as pessoas por nada. "Esses trens italianos, pensava, fazem umas paradas bem longas."

Provavelmente já havia olhado o relógio umas cem vezes quando se deu conta de que, - não era possível! - estava acontecendo alguma coisa estranha. Quarenta e cinco minutos desde que o trem parou... Mira dirigiu-se ao padre em inglês:

-
...speak english?

O padre continuava debruçado sobre o livro.

- Please! Do you speak english?

O homem santo não se mexia.

"Morreu!, pensou Mira. Já deve estar se entendendo diretamente com Deus, e eu aqui, precisando de uma informação..."

Quando já se levantava para sair em busca de notícias sobre a imobilidade do trem, o padre finalmente acordou. Mira sentou-se e perguntou-lhe novamente se falava inglês. Ele acenou afirmativamente. Mira então quis saber porque o trem havia parado.

O padre, entre bocejos e um ar de enfado, disse-lhe que provavelmente tratava-se de uma greve de ferroviários.

- GREVE?! Que coisa doida! Que greve é esta que não esperam nem que o trem chegue à estação para começar?...

O padre explicou que lá era assim mesmo. As paralisação dos trabalhadores obedeciam rigorosamente a um horário de início, decidido numa espécie de assembléia. No caso dos ferroviários, os trens eram parados onde quer que estivessem até que as negociações chegassem a bom termo.

- Ai, meu Deus. Eu preciso chegar a estação. Minha irmã está lá me esperando... Quanto tempo dura isso?

- Nunca se sabe quanto tempo uma greve pode durar. Às vezes dura duas horas, às vezes 5 horas. Pode até durar dias...

- O QUÊ? Eu quero um taxi. Como é que eu faço pra chamar um taxi?

- Oh! Não se preocupe. Não vai-lhe faltar nada. Quando há greve são oferecidos alimentação, travesseiros, cobertores e até hospedagem em hotéis, se estivermos próximos de alguma cidade.

- ALIMENTAÇÃO? HOSPEDAGEM? Eu preciso é encontrar minha irmã lá na estação. Ela vai ficar doida se eu não chegar.

- Não se preocupe. Já devem ter anunciado a greve lá na estação. Ela já deve estar sabendo.

Ah, não! Ela não tinha vindo a Itália para hospedar-se num trem!?.... Se pelo menos estivesse no Expresso Oriente... Uma possibilidade supereconômica de ir a Paris e ela e Roberta iam se perder do amigo que as estaria esperando. Mira resolveu botar a boca no trombone. Que os ferroviários italianos fizessem a greve que bem entendessem desde que não a impedissem de ir a Paris. Levantou-se para buscar no trem alguém com quem pudesse reclamar e exigir um transporte até a estação. Ia mostrar para a italianada daquele trem o que é "rodar a baiana". Porém, no momento em que ficou de pé o trem deu um solavanco e voltou, finalmente, a andar.

Com o tranco, Mira caiu de bunda em cima do colo e da Bíblia do padre. Este fez apenas:

- Oooooh! - ajeitou as páginas que ficaram meio amassadinhas, e voltou a concentrar-se nas sagradas escrituras como se Mira, suas fartas nádegas e suas aflições não existissem.

Enquanto olhava a paisagem que corria emoldurada pela janela, (e que ela agora já não estava achando tão encantadora assim), pensava com seus botões: "Essas coisas só acontecem comigo..."

Na estação encontrou uma Roberta à beira de um ataque de nervos que nem ao menos queria ouvir a sua nova história:

- Vamos embora! Depois você me conta. A gente ainda tem que passar no hotel pra pegar a bagagem e correr para encontrar o Alvinho.


ju rigoni


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4 comentários:

Pena disse...

Linda e Simpática Amiga:
Há acontecimentos ou atitudes que desconhecemos que oscilam e variam de países para países.
Uma bela narração deste "desencontro" com perfeição literária e pessoal fabulosas. Sublime!!!!
Expressa uma sensação que vivifica maravilhosa e fabulosamente.
Pura magia literária admirável e extraordinariamente doce.
Adorei.
Beijinhos amigos de respeito, estima e consideração.
Sempre a estimá-la e a lê-la atentamente.

pena

Bem-Haja, pelo gesto de ternura deixado no meu blogue.
MUITO OBRIGADO sincero. Bem-Haja, fabulosa amiga divinal.

Lau Milesi disse...

Olá Ju!!! Que bacana seu blog!!!! Adorei a crônica!
Me identifiquei tanto com a Mira.Eu também vivo "mirando" coisas desagradáveis "like" a cena da Mira caindo de bunda no colo do padre.[rs] Depois ainda falam das greves no Brasil, né não? [rs] Há pouco tempo fiz umas viagens de trem que me renderam boas crônicas. Ainda não foram publicadas.[rs]
Parabéns pelo blog ! Mais tarde visitarei os outros que vc sugere.

Um beijo e já estou te seguindo.
E.T. Obrigada por estar no meu blog e desculpe não ter vindo ontem aqui.

Eloah Borda disse...

Como sempre, amei! Dizer mais, será repetir-me.
Beijos.
Eloah

Jose Ramon Santana Vazquez disse...

...traigo
sangre
de
la
tarde
herida
en
la
mano
y
una
vela
de
mi
corazón
para
invitarte
y
darte
este
alma
que
viene
para
compartir
contigo
tu
bello
blog
con
un
ramillete
de
oro
y
claveles
dentro...


desde mis
HORAS ROTAS
Y AULA DE PAZ


TE SIGO TU BLOG




CON saludos de la luna al
reflejarse en el mar de la
poesía...


AFECTUOSAMENTE
MIRA NA REDE




Jose
ramón...