sábado

O Contágio

Mira está sentada, lanchando, na praça de alimentação de um shopping quando aproxima-se uma mulher muito bem vestida, cheia de jóias, perfumosa, que senta-se à mesa ao lado. Coloca sobre uma das cadeiras a bolsa importada, o celular de última geração, e várias peças de material de campanha política. Repentinamente, vira-se para ela e pergunta sem o menor pudor:

- A senhora já tem candidato?

Mira, pega com a boca cheia do naco do sanduiche que acabara de morder, responde quase rosnando:

- Já.
- Se a senhora tiver um tempinho eu gostaria de lhe falar sobre o candidato Fulano de Tal.

Mira mastiga as palavras...

- Eu não tenho um tempinho agora.
- Quando a senhora ouvir o que eu tenho a dizer, com certeza vai mudar de opinião sobre o seu candidato.

Mira acabara de morder, novamente, o sanduiche.

- Já lhe disse que não tenho tempo agora.
- Senhora, muitas vezes perder é ganhar tempo. Eu sei que a senhora vai ficar muito satisfeita com o que eu tenho a lhe dizer sobre o Fulano...

A irritação de Mira é madrasta...

- Minha filha, você é surda?
- A senhora não precisa me ofender...
- Eu também acho que não. Mas parece que você pensa o contrário.
- Olha, não estou lhe entendendo não...

Mira aponta a própria boca, novamente cheia.

- Não está claro que eu estou com pressa e não posso conversar com você agora?
- Mas eu apenas estou querendo apresentar à senhora uma excelente opção para prefeito...
- E eu já dei a perceber que estou muito satisfeita com a minha própria escolha.
- A senhora já ouviu falar no candidato Fulano de Tal?

Mira, outra vez com a boca cheia. Não é mesmo uma boa hora para regras de etiqueta.

- Já ouvi e não gosto do que ouvi.
- Provavelmente o que a senhora ouviu não é a expressão da verdade...
- Ah, é sim!
- Eu não sei o que a senhora ouviu, mas com certeza é uma grande mentira.
- Olha, você não sabe o que eu ouvi, mas sendo você um dos cabos eleitorais dele, - Mira faz uma pausa para olhar a mulher dos pés à cabeça e continua -, tenho agora a certeza de que ouvi uma grande verdade.
- Que arrogância! A senhora está me discriminando porque estou trabalhando em favor de um candidato sobre quem a senhora formou uma opinião errada.

Mira vai se levantando, desistindo do restante do sanduiche e do suco.

- Respeito a sua opinião. Respeite a minha.

A mulher estende à Mira, que já está pegando as sacolas da cadeira para bater em retirada, um impresso.

- Tome! Leve pelo menos este jornalzinho de campanha para que a senhora conheça um pouco melhor o Fulano.

- Tá! Ele vai ter uma serventia lá em casa. Eu tenho cachorro e gato.
- Vá ser malcriada assim na puta que a pariu!

Mira olha ao redor.

- Cadê os seguranças deste shopping, hein?... Você sabia que é proibido fazer campanha aqui dentro, né não?
- O quê?... Agora, a senhora está me ameaçando, é?
- Vamos ver essa empáfia toda já-já...

Mira vê um grandalhão com o rádio na mão.

- Ei! -, ela chama.

A mulher desaparece como um raio. Mira olha o lanche pela metade sobre a mesa e sai, decidida a voltar para casa. Parece que hoje é mais um daqueles dias...

Na porta do shopping, um rapaz lhe estende um "santinho".

- A senhora já tem candidato?
- Ah, não!... Por hoje chega! Meu filho, se você tem amor a vida mantenha distância que eu já tô com o "diabinho" no corpo. E tal é a irritação com que Mira, num gesto brusco, o afasta que o cabo eleitoral acha melhor não insistir.

Mira entra no taxi, dividindo com suas compras o banco traseiro.
O motorista ia puxar conversa, tentar conseguir mais um eleitor para o seu candidato, mas percebe que a passageira está inquieta e acha mais prudente ficar calado. O carro pára no sinal, onde um grupo de cabos eleitorais agita bandeiras onde se lê o nome de um partido e seu respectivo candidato. Um deles bate freneticamente no vidro da janela na esperança que Mira o abra. Lá de dentro dá pra ouvir a pergunta.

- ... já tem candidato?

Mira transpira mais do que de costume. A pressão deve estar alta. A sensação é a de que as ruas foram novamente invadidas por essas estranhas e sintomáticas tribos de desempregados a sacudir bandeiras e distribuir todos os papelotes do eventual patrão, em quem, muito provavelmente, nem eles próprios votarão.

Quando o carro pára em frente ao seu prédio Mira nem pode acreditar. Finalmente, em casa. Longe daquele filme felliniano, misto de certezas e utopias, retrato colorido de um país em branco e preto, e personagens de uma transparência que dói na alma. Salta do carro e pára ao lado da janela do motorista do taxi que lhe estende o troco sem saber do que escapara quando optou pela mudez.

- Boa noite, senhora!

Mais tranquila, ao passar pela portaria em direção ao elevador, sêo Zé, o zelador, vem correndo e chamando:

- Dona Mira! Dona Mira!
- Que é, sêo Zé? Aconteceu alguma coisa?
- Não, não. Tá tudo bem, dona Mira. Eu só queria perguntar se a senhora e a dona Roberta já têm candidato?

- Sêo Zé, o senhor tem mãe?...

O zelador coça a cabeça, enquanto Mira vira-lhe as costas, ignorando o "santinho" que ele tentara lhe entregar.

Já em casa, com Chiquinha ao colo, ouve a irmã perguntar:

- Que cara é essa? Pisaram-lhe os calos?
- Não me enche o saco hoje não...
- Credo! Perdoe-me por ter nascido, viu? Que grosseria!
- Tá certo, desculpe-me. É o segundo turno dessa falta de educação que, por sua vez, é resultado da total ausência de uma real consciência política. Acho que fui contaminada na praça de alimentação do shopping.
- Nooossa!...

ju rigoni (sem registro de data)


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2 comentários:

Eloah Borda disse...

Amei, querida! aliás, sempre adoro as histórias de Mira...
Beijos.

osvaldo disse...

Hola ju, amiga y compañera de blogs.
Como siempre me apasiona tu estilo de llegar, casi con sabia prepotencia al interes de tu lector a llegar al final. Más en este caso, me encanto tu narrativa, más no alcanzo a comprender el fondo de la cuestión, seguramente debido a mi imperfecto manejo de tu exquisito idioma.
Un beso grande, osvaldo